sábado, 13 de novembro de 2010

Chapéuzinho Não Tão Vermelho

Chapéuzinho não TÃO VERMELHO...

(este conto apresenta conteúdo inadequado para menores de 18 anos, e para pessoas de mentalidade estupidificada)

Merda!
No auge de seus 14 anos, tudo o que aquela garota sabia fazer era reclamar e pensar palavrões. Já considerava um tremendo tédio viver no campo, longe de tudo e de todos, em um lugar que provavelmente ninguém conhecia, e ter como seus melhores amigos um diário, uma dúzia de livros que já lera dezenas de vezes, e um álbum de fotografias da viagem de seu pai à França, décadas atrás.
Enquanto caminhava...

Perdoem-me caros leitores, mas preciso fazer uma breve interrupção na história que acaba de começar. É fato conhecido por todos que a famosa chapeuzinho vermelho não possuía um nome, ou, se o possuía, provavelmente era Maria, ou algo do gênero. Entretanto, não posso continuar um conto sobre ela sem nomeá-la devidamente. E não posso, também, escolher um nome simples e comum, pois isto tiraria toda a graça da história.
Assim, opto por nomes mais sombrios, como, por exemplo, Joana D’arc, um nome que sempre me causou arrepios ao ser pronunciado. Partindo deste exemplo, minha querida chapeuzinho chamar-se-á de Morgana.
Agora nomeada, posso continuar a história de nossa adorável protagonista...

Enquanto caminhava, Morgana resmungava, reclamava, e chutava pedrinhas no chão. Conforme avançava estrada afora, as nuvens negras que se formavam no céu iam escurecendo cada vez mais, e o vento resfriava-se aos poucos, tornando o clima denso e gélido, o que piorava um pouco mais o humor da garota.

Mas que grande porcaria! Por que minha mãe precisava me mandar levar doces e remédios para minha avó justo agora? Não bastasse estar escurecendo, o tempo está piorando, e parece que vai chover. E, prevendo isso, aquela vaca ainda me advertiu: “Não demore, e tome cuidado com a chuva! Não esqueça o seu capuz, Morgana! E não ande pela floresta, ou você pode se perder!”.
Aos diabos com esses doces! Por que não vai você mesma então?

E assim, entretida em seus pensamentos, Morgana continuou seu longo e tedioso caminho até a casa da avó, que ficava a consideráveis quilômetros da sua. O trajeto conseguia ficar pior se ela se desviasse da floresta, contornando-a por muitos quilômetros a mais, como sempre fizera com sua mãe, desde pequena.

Mal tinha andado por vinte minutos, quando se distraiu com o céu. Encarava-o, desafiadora, como quem dissesse “E aí, vai chover em cima de mim ou não?”. Deu meia dúzia de passos, mal-humorada e ranzinza, quando afundou todo o pé em uma grande poça de água que havia na estrada. Seu pé, envolto num simples sapatinho de pano preto, ficou completamente encharcado, assim como sua meia branca que ia até quase os joelhos.

Mas que filha da puta!

Sim... era assim que Morgana se sentia. De péssimo humor, provocado por seu recém-nascido ciclo menstrual, no início de sua tardia puberdade, habitante de um lugar deserto e isolado, solitária, sem amigos e cheia de fome, a garota não conseguia passar quinze minutos que fossem sem falar ou ao menos pensar um palavrão grosseiro e descarado. Às vezes tinha vontade de matar alguém, para saber se seria mais aliviante para sua cabeça. Quem sabe um dia...

Também se acumulava em sua lista de reclamações o fato de que ela estava menstruada. Ainda não se acostumara com aquela incômoda sangria regular a lhe sujar as roupas e a lhe forçar a lavá-las com maior freqüência do que o normal. Sem contar que morria de vergonha daquilo.

Começava a tomar corpo, como o de sua mãe: esbelta, graciosa, de curvas generosas e sem exageros. Estatura mediana, profundos olhos cor-de-mel, belos como o reflexo de uma lua dourada sobre um lago cristalino numa noite de verão, e longos cabelos negros e lisos, ajustados na altura da cintura, e naturalmente bem cuidados. Também achava incômodo o brotar daquele par de seios já não tão pequenos, e ainda não aprendera a usar um sutiã corretamente. Portanto, deixava-os sob a roupa, perturbando-lha o humor ainda mais.

Via-se, já há uns 10 minutos, travando uma batalha imaginária contra os monstros de seus livros, quando sentiu as primeiras gotas finas da chuva atingirem seu rosto. Fez uma cara descontente, reclamando enquanto cobria a cabeça com o capuz que fazia parte da negra capa que utilizava sobre a roupa.

Até que estava demorando... Porcaria! Vou chegar ensopada à casa daquela velha, ela vai me forçar a tomar uma sopa, ou um guisado, o que, sinceramente, eu sempre detestei...

E assim, a chuva se intensificou lentamente, atingindo e ensopando totalmente aquela figura feminina, jovial e bela, mal-humorada, usando um simples vestido branco, e coberta por uma capa e um capuz pretos. Era daquelas chuvas finas e incômodas, aquelas que penetram cada poro da nossa roupa, e nos encharcam aos poucos, insistentes e demoradas. O vento gélido lhe atingia as coxas, deixando-a com frio, e fazendo-a se arrepender de estar usando aquele vestido. Antes tivesse desobedecido a mãe!

A roupa molhada agora lhe grudava no corpo, delineando melhor suas curvas, e castigando maliciosamente os mamilos endurecidos pelo frio do vento. Se tivesse uma espingarda, Morgana dispararia contra o primeiro ser que se mexesse perto dela, só para descontar um pouco de sua raiva. Ou ao menos tentaria, se soubesse como usar uma arma...
E assim, congelando de frio, e tremendo de rancor, Morgana caminhou por mais uns trinta minutos, até finalmente chegar à floresta. A estrada, neste ponto, fazia uma curva súbita para o lado direito, e contornaria a longa extensão do bosque, numa caminhada que poderia durar mais de quatro horas. Já por dentro da floresta, por sua vez, a caminhada talvez durasse menos de uma hora.

Era, entretanto, sempre muito arriscado entrar naquele bosque, especialmente em dias escuros como aquele. As árvores eram todas iguais, e não havia trilha ou caminho traçado. Não havia placas, sinais, ou forma de sinalização ou comunicação visível. Perder-se era praticamente uma certeza, e por isso os habitantes da região sempre desviavam do caminho.

Mas ao olhar para o bosque, aquela mata fechada, densa, escura e velha, um arrepio sinistro percorreu a espinha de Morgana, que se lembrou imediatamente do conselho de sua mãe: E não ande pela floresta, ou você pode se perder!”.
Foi quando o espírito adolescente florescido pela puberdade iluminou sua mente com algumas sensações nunca antes experimentadas. Acabara de descobrir que nunca conhecera a floresta por dentro, e não sabia se era realmente assim tão perigosa quanto falavam. Além do mais, de acordo com seus cálculos, a casa da avó ficava logo do outro lado, portanto era só ir sempre reto que não haveria erro!

Porém, bem mais do que todas as razões lógicas que pudesse pensar a fazia querer entrar na floresta: era a simples teimosia, e o desejo de desobedecer. Morgana estava no início de sua adolescência, e isso, inconscientemente, a impelia a conhecer e explorar o mundo, ignorando os sábios conselhos de sua mãe.
Afinal, que mal poderia acontecer?

Oras, mas que grande porcaria! Essa merda dessa chuva a me arruinar o dia todo, um frio dos diabos, e eu aqui a pensar no que fazer! Se continuar a tomar este vento, vou é pegar um resfriado! Dentro do bosque o vento está mais fraco, e deve estar mais quente lá também. Sem contar que as árvores amortecem a queda das gotas de chuva, o que certamente fará com que eu me molhe menos. Se eu for sempre reto, chego à casa da velha bem antes do que se eu fizer este desvio, e assim, minha chance de ficar doente é menor! Vê só? Eu sou uma garota esperta!

E com essa desculpa esfarrapada para si mesma, chapeuzinho negro entrou na floresta.

Ora caros leitores, se não chegamos a um ponto crucial da narrativa. Todos, ou a grande maioria de vocês, já conhecem a velha história da chapeuzinho. E todos sabem, portanto, que é neste momento que ela comete o grande erro do dia. Mas agora, pensemos: que graça teria a história se assim não tivesse sido? Ela teria chegado sã e salva à casa da avó, e a história teria seu fim. Sem moral, sem ensinamentos, e sem diversão. Assim sendo, deixemos nossa estimada heroína errar ingenuamente. Nosso conto fica mais interessante desse jeito.
A floresta, a princípio, pareceu algo assustador e sobrenatural. Todo aquele ruidoso silêncio, aquela escuridão, todo aquele ambiente desconhecido, causavam em Morgana uma sensação inexplicável, mas deliciosa. Aos poucos, o bosque passou de assustador a fascinante, belo e hipnotizante. Morgana não conseguia parar de observar os detalhes, as folhas, as árvores, o chão, os pequenos animais que volta e meia passavam por ali...

Mas, também vagarosamente, a floresta voltou a ser arrepiante. Morgana só percebeu isso quando se deu conta de que não conseguira seguir em linha reta nem sequer por 10 minutos. Mas, pior do que isso, perdeu todos os pontos de referencia, perdeu a noção do tempo, e não sabia direito nem sequer de onde tinha vindo. Achava que já tinha visto aquela grande árvore ali umas cinco vezes. Foi quando se deu conta de que estava perdida...

A sensação de estar perdida era absolutamente nova para Morgana. Começou a sentir uma pressão esmagadora no peito, e perdeu o fôlego... Acharia o caminho de volta? Morreria de fome na floresta? Ou talvez de frio, por que não estava nem um pouco mais quente aqui dentro do que lá fora. Pelo contrário: a sombra das árvores impedia que o fraco calor do sol a atingisse, tornando o local ainda mais gélido do que na estrada.

Começou a andar, a passos rápidos e respiração ofegante, a procura de qualquer coisa que a pudesse ajudar. O desespero fora lhe tomando as idéias, impedindo que prestasse atenção aos detalhes, ou que pensasse em algum plano para sair daquela situação. Afora isso, o frio congelava-lhe os pensamentos, concentrando sua mente na dor nos joelhos, ou no arrepio da pele. E por longos minutos, talvez quase uma hora, Morgana vagou temerosa pela floresta, gélida, encharcada, dolorida, e faminta.

A chuva então se intensificou, ao nível de uma pequena tormenta... Gotas grossas e doloridas de água caíam abundantemente do negro céu, e o breu tomava conta absoluta do bosque, impedindo a boa visualização de quase qualquer coisa. Foi quando Morgana encontrou uma árvore bastante grande, com um buraco sob as raízes no qual não se acumulava água. Resolveu se proteger ali. Deitou-se, encolheu-se, comeu todos os doces da cesta que carregava para sua avó, e, enfim, adormeceu.

Foi quando o inesperado aconteceu. Rapidamente, algumas finas raízes da árvore se enrolaram em seus tornozelos e joelhos, prendendo-a com força no chão, enquanto a chuva se intensificava a um nível assombroso. Morgana tentou se levantar, mas foi derrubada pelas raízes, e percebeu que toda a água do solo corria na direção do buraco em que estava. O buraco foi se preenchendo de água, e ela, sem conseguir escapar, tentava desesperadamente sair dali. A água atingiu sua cintura, deixando-a mais pesada, e ela sentiu as raízes se firmarem com mais força em sua carne, rasgando sua roupa aos poucos. A água atingiu então sua barriga, seus seios, seus ombros, e seu pescoço... De cabeça erguida, Morgana tentava desesperadamente respirar, enquanto era cada vez mais fortemente presa pelas raízes. Quando água finalmente cobriu-lha o rosto inteiro, começou a se afogar. Água lhe entrava pelas narinas, pela boca, pelos ouvidos, fazendo-a engasgar, afogar, e se desesperar ainda mais. Fechou os olhos...

E os abriu de repente!
Estava ainda no buraco. Não havia água, nem raízes assassinas, mas ela ainda respirava com dificuldade, talvez pelo susto que tomara. Percebeu que não queria ficar mais ali, e saiu, suja de barro, de dentro das raízes da árvore. Ainda chovia forte, mas a lua já iluminava pequenos trechos do caminho. Uma clareira se iluminava, muito mal, a algumas centenas de metros. Caminhou até lá, na esperança de encontrar alguma coisa.

E encontrou.

Encostado em uma grande rocha, também encharcado, descascando com as mãos algumas laranjas, estava sentado na clareira um homem alto e magro. Vestia-se pobremente, com roupas bastante sujas e velhas, e tinha os cabelos compridos até pouco abaixo dos ombros, ligeiramente ondulados, castanho escuros, tão escuros quanto a terra sobre a qual pisava. Tinha a pele morena, e uma barba curta, rala e malfeita a lhe cobrir todo o rosto. Os dentes eram ligeiramente amarelados, e os pés eram cobertos por uma bota velha e desgastada. Aparentava ter mais de trinta anos.

Ao aproximar-se do estranho, Morgana estava apreensiva, pois não sabia como ele reagiria. Um arrepio medonho a percorreu o corpo todo, dos pés à nuca, quando ele a olhou profundamente, passando os olhos com plenitude por todo o seu corpo, de baixo a cima, e de cima a baixo. O homem deu então um ligeiro e malicioso sorriso, e a ofereceu uma das laranjas que tinha acabado de descascar. Parecia menos encharcado do que ela, e aparentemente já estava acostumado com a floresta.

Um dos fatos que perturbou Morgana naquele instante foi o detalhe de nunca ter tido grande contato com homens. Seu pai morreu quando ainda era nova, e ela não conheceu irmãos ou primos de sua idade. Os poucos homens da comunidade não mantinham grande contato com ela. Por isso, ela era totalmente ingênua quando se tratava dos assuntos do sexo oposto. Isso a fazia ao mesmo tempo ansiosa e temerosa.

- Tome, coma garota. Você parece faminta! – A voz do rapaz era rouca e grave, meio rasgada, como se ele estivesse com alguma dor de garganta mal curada.
- Heemm... – meio constrangida, Morgana tomou a laranja e deu uma mordida. Estava saborosa. – Muito obrigada...
- Sente-se! A chuva já está diminuindo, e você já está toda molhada mesmo...
Morgana, ainda desconfiada, sentou-se próximo ao homem, e continuou a comer sua laranja. Minutos silenciosos se passaram enquanto eles comiam, lentamente, sem dizer mais absolutamente nada. E, enquanto comiam, a chuva cessou. As nuvens ainda estavam carregadas e negras, mas espaçaram-se um pouco, deixando a lua iluminar o céu e a terra com sua luz fraca e pálida.

Depois de uma longa hora, o homem finalmente voltou a falar.
- Diga-me, mocinha, como você se chama?
Ainda desacostumada com a presença de outras pessoas, Morgana não se sentiu à vontade para dizer seu nome. Por isso, contou um apelido antigo...
- Pode me chamar de Chapeuzinho...
- Hum... Chapeuzinho... – ele repetiu lentamente, como quem saboreia uma sobremesa deliciosa – Muito bom conhecê-la. Você me parece perdida, estou errado?
- Bem...- Morgana teve vergonha de confessar a verdade, portanto inventou algo rapidamente – Só tomei um atalho para a casa de minha avó.
- Sua avó? É para ela que você está levando esta cesta?
- Sim. São remédios dos quais ela está precisando...
- Hummm... Sei... Então, suponho que você saiba o caminho até a casa dela, não sabe?
Esta pergunta pegou Morgana em cheio. Se ela negasse, confessaria estar perdida. Mas se concordasse com o estranho, poderia perder a chance de encontrar a saída da floresta. Estava entre confiar nele ou não. Resolveu não arriscar.
- Sim, claro que sei. Inclusive, já preciso ir. Agradeço por ter compartilhado sua comida comigo, mas eu realmente preciso ir.
Dizendo isto, Morgana se levantou. O homem continuou sentado em seu lugar, limpando as unhas na própria camisa.
- Então, boa viagem!
- Obrigada!
Desconfortável, Morgana afastou-se da clareira sem saber se tinha feito o certo. Deu três passos, e olhou para trás. Percebeu que o homem ainda olhava penetrantemente para ela. Antes de partir, resolveu fazer uma última pergunta.
- E o senhor, como se chama?
- Meu nome? – Ele a olhou com interesse - Bem... Eu perdi o meu nome há muito tempo atrás, quando eu vivi em um lugar bastante... – ainda fez uma perturbadora pausa antes de encerrar sua frase-... Ruim!
- Um lugar ruim? Mas, então, como as pessoas te chamam?
- Bem... Eles costumam me chamar de... LOBO!
Os olhos da menina se arregalaram, desacostumada com esta espécie de nome ou apelido. Mas, enfim, endireitou-se e foi se afastando.
- Prazer, senhor Lobo... Nós nos vemos por aí.
- Adeus... – respondeu Lobo, secamente, voltando a atenção para suas unhas.

E, assim, Morgana se afastou e continuou a caminhar pelo bosque, totalmente perdida. Ainda estava molhada, mas já não sentia o mesmo frio que sentira antes. O vento cessou completamente, e só o que sentia agora era um grande incômodo, por todas as atuais circunstâncias que a rodeavam.

Andou, andou, andou, já praticamente sem grandes esperanças, e por incontáveis minutos, ou horas – não sabia realmente dizer – até que percebeu que estava sendo seguida. Lobo andava atrás dela, há uns 100 metros de distância, e somente agora ela tinha percebido.

Morgana resolveu então parar, e esperar por ele. Depois de algum tempo, ele se aproximou, andando de um jeito desconfortável e esquisito. Parou ao lado dela, e lhe disse:

- Confesse, você está perdida, não está?
Trêmula de medo, ao saber que fora seguida este tempo todo, Morgana perdeu um pouco o controle sobre as emoções. Quando falou, gaguejava um pouco, e estava visivelmente nervosa.
- E-estou... V-você pode me ajudar?
- Sim, eu posso. Mas não tente me enganar novamente. Eu poderia te deixar vaguear pelo bosque a noite toda.
- Está bem...

E assim, Lobo foi caminhando ao lado de Morgana, que o seguia calada e pensativa.

Quem diabos será este homem?De onde será que ele vem? Ele disse que viveu em um lugar ruim. Onde terá sido?
Ele parece estar tentando me ajudar, mas essa cara dele, e esse jeito com que ele me olha, me assustam muito. Ainda não sei se posso realmente confiar neste estranho...
E esse nome... Lobo? Por que o chamam assim? Até onde sei, isso não me parece algo bom, ou uma espécie de elogio...

E, observando melhor o homem, Morgana foi reparando em mais alguns detalhes dele.

Ele tem dezenas de cicatrizes. Meu deus! Como será que as conseguiu? Além disso, ele parece ter uma tatuagem no braço, mas eu não consigo ver direito, por que a camisa esconde.
Ah, esse hábito dele também me está incomodando um pouco. Volta e meia ele franze o rosto, e dá uma inspirada rápida e profunda, como se estivesse farejando alguma coisa. Eu, particularmente, não sinto nenhum cheiro, além desse cheiro natural do bosque. O que será que ele está procurando?

Se soubesse o que Lobo farejava, Morgana jamais teria se aproximado dele. Por que o que, de fato, Lobo estava farejando era o cheiro de sangue. O odor do sangue virgem e pueril que Morgana exalava por entre as pernas, que o atiçava os sentidos, e que o distorcia e enevoava os pensamentos. Lobo sentia o cheiro da fertilidade feminina, e sentia-se excitado com isto. E como se sentia excitado!

Depois de quase uma hora inteira de caminhada, Lobo aproximou-se bastante de Morgana, aos poucos, sem ser percebido. Enfim, passou a mão pelas costas da garota, envolvendo-a pela cintura num abraço ligeiramente apertado, dizendo:
- Você deve estar com frio, não está?
Morgana, ao ouvir isto, tentou se afastar, desvencilhar-se do abraço masculino que nunca teve, e que não estava preparada para receber ainda.
- Venha, deixe-me aquecer melhor o seu corpo! – E, dizendo isto, Lobo a puxou com mais força, apertando-a contra si com violência ao perceber que a garota se debatia contra o abraço.
Tal mudança de comportamento aguçou os sentidos de Morgana, que sentiu um frio emergente no estômago, e tentou de desvencilhar a qualquer custo do abraço nojento de Lobo.

Ao sentir a relutância, Lobo puxou Morgana para si com muita força, ficando de frente para ela, segurando-a pelos braços. Dessa maneira, encarando-a com os olhos insanos de luxúria e desejo, disse:
- Venha, me deixe te esquentar um pouco!
E, antes que tivesse reação, Morgana recebeu um beijo forçado nos lábios. Tentou resistir, mas Lobo era demasiado forte. Quando desprendeu um braço, segundos mais tarde, afastou o rosto repugnante do seu, e desferiu-lhe um potente soco contra o nariz, que fez com que Lobo a soltasse para levar ambas as mãos à face, gritando.

-SUA VAGABUNDA!

E Morgana desatou a correr.

Correu, esquecendo-se do frio, da dor, ou do cansaço. Apenas o medo a impelia à frente. A adrenalina percorria seu corpo todo, e as pernas se mexiam mais por instinto do que por razão. A cesta de remédios há muito fora abandonada no chão do bosque. E corria, como o vento, tornando tudo ao seu redor em um borrão indistinto e mal iluminado pela lua.

A chuva tornara a cair, atingindo o rosto desprotegido de Morgana, que corria desesperadamente mata adentro, ouvindo atrás de si os passos pesados e apressados de Lobo, que agora a perseguia com voracidade. A garota saltava sobre raízes, rochas, buracos e outras armadilhas traiçoeiras da natureza, impulsionada apenas pelo medo de ser novamente agredida por aquele homem malicioso e terrível.

Mas, ao passo que sua respiração ficava difícil e suas pernas começavam a doer, Morgana ouvia os passos de Lobo se aproximando. A ansiedade e a angústia crescentes em seu coração a impeliram a olhar para trás. Percebeu o perseguidor correndo freneticamente em sua direção, e sua alma deu um grito de desespero. O pé direito pisou em uma pedra mais alta, torceu-se, e a alta velocidade fez com que a garota caísse com violência no chão, de barriga para baixo. Seu tornozelo doía monstruosamente.

Lobo se jogou sobre Morgana, prendendo-a sob o corpo, deixando-a totalmente indefesa. Segurou com a mão direita em seus cabelos, e puxou-os para si, olhando nos olhos apavorados da garota. Sorria, maliciosa e insanamente, e a provocou, lambendo seu pescoço lentamente, e dizendo:

- Agora, você vai ser minha!
- NÃAAAAAAO! SOCORRO!!! – Morgana gritava, desesperadamente, na vã esperança de obter alguma ajuda. Ninguém veio.

Enfiando as garras sob o vestido da garota, Lobo arrancou a roupa de baixo de Morgana, levou-a ao nariz, e inspirou profundamente o odor fértil e imaturo que lhe ensandecia os sentidos a ponto de êxtase. Arremessou para qualquer lugar a calcinha ensangüentada, e apalpou voluptuosamente o corpo indefeso que tinha sob seu domínio, entregando-se aos próprios desejos luxuriosos de besta descontrolada e febril.

E assim, incontrolável, monstruoso e maligno, Lobo feriu Morgana profundamente com seus desejos masculinos abomináveis. Feriu-a no corpo, na alma, e no orgulho. Feriu-a com violência, sem dá-la sequer uma chance de se defender, abusando maliciosamente de sua ingenuidade, de sua inocência, e de sua pureza. Desfez-se em prazer, consumindo-lha a carne com desejo, e enfim deixando-a adormecida no chão do bosque, com a alma a implorar por socorro.

E nem sequer por um segundo sentiu dó pelas lágrimas apavoradas soluçadas entre um grito e outro dados pela garota.

Morgana desmaiou, exausta e consumida, e permaneceu inconsciente por algumas horas. Seu corpo todo tremia, espasmódico, entre soluços de dor, vergonha, e mesmo de frio. Sua roupa estava encharcada, imunda, e ensangüentada. O vestido branco dera lugar a grandes manchas vermelhas, escuras, e a negra capa pendia para o lado do corpo, presa ao pescoço junto com o capuz.

Quando acordou, o tornozelo doía ainda mais, e estava monstruosamente inchado. O corpo inteiro também estava dolorido. Os primeiros sinais da luz do dia estavam surgindo no céu, e a chuva caía insistentemente sobre o bosque, impedindo que suas roupas se secassem. Nada disso fora percebido, entretanto, por Morgana, que estava então de barriga para cima, as pernas entreabertas, e Lobo sobre ela, impedindo sua fuga. O maníaco a beijava e lambia o pescoço, comprimindo o corpo contra o dela, impedindo-a de fechar as pernas, esfregando-se monstruosamente contra sua vítima. Agarrou-a pelos cabelos e sorriu insanamente, dizendo:
- Calma, minha gatinha. Ainda tem bastante tempo para nos divertirmos juntos hoje.
Morgana sentia a nudez maldita de Lobo tocando seu corpo ferido, e tentou – inutilmente - se desvencilhar. Debateu-se, gemendo, sob o abraço odioso do estuprador, quando, enfim, libertou o braço direito. Tateou pelo chão, até que encontrou uma pedra com duas vezes o tamanho do seu punho. Atingiu seu agressor com tanta força, que pensou ter-lhe partido o crânio. Lobo desmaiou imediatamente, e Morgana saiu debaixo dele, desatando a correr pela floresta, desesperadamente apavorada.

Disparou, sem pensar em nada, por mais de duas horas. Mancava, com o tornozelo inchado e roxo, e chorava angustiosamente. Estava nos primeiros minutos do dia, quando a luminosidade ainda era fraca demais para se dizer que o sol havia, de fato, despontado, quando encontrou um lago. Parou para beber água e improvisar um curativo para o pé, feito com um pedaço de seu vestido rasgado. Só agora percebia como seu corpo estava ferido, dolorido, e maltratado.

Oh, não, mas que desgraça! O que aconteceu comigo? Maldito! Maldito momento em que fui entrar nessa floresta desgraçada! Maldito desgraçado daquele Lobo, filho de uma puta que fez isso comigo! Maldito! Malditoooooooooo!

E toda ela chorava, inconsolável, arrependida, e sem ninguém por perto a quem pudesse pedir ajuda. Tinha vontade de estar morta, de que tudo não passasse de um pesadelo, ou uma horrível história, tão profunda que ela havia mergulhado dentro do papel da personagem. Queria que bastasse um beliscão, e tudo voltasse ao normal. Mas não voltaria.

A chuva insistia em não acabar. As nuvens mantiveram o dia com aquele clima de que jamais amanheceria novamente, e Morgana partiu, já sem esperanças, a vagar pela floresta. Mas, como se fosse impossível de acontecer, ela limpou os olhos ao enxergar, ao longe, a velha casinha onde vivia sua avó. Seus olhos encheram-se de lágrimas, e a garota partiu imediatamente para o casebre, com o alívio de quem acorda de um terrível pesadelo.

Ao chegar ao casebre, Morgana percebeu que algo estava errado. As nuvens já então se fecharam completamente, e a chuva forte começara a cair, tornando o céu escuro como a noite. E a porta da casa estava ao chão.

Mas o que diabos aconteceu aqui?Onde está a minha avó? Será que este inferno deste dia não vai se acabar nunca?

Entrando na casa, Morgana percebeu que as coisas estavam fora do lugar, como se um tornado houvesse passado por ali minutos atrás. Vassouras derrubadas, pratos quebrados no chão, a mesa desfeita. A porta que dava para o quarto de sua avó estava fechada, e ela ouviu algum barulho lá dentro. Correu para lá, batendo desesperada na porta.

- VÓ? VÓ, VOCÊ ESTÁ AÍ? POR FAVOR, ME AJUDE!
E do outro lado da porta, que estava trancada, veio uma voz aguda e estridente:

- Oh, querida, por favor, espere!

Mas que porra é essa? Minha vó está com a voz arranhada e estranha! Será que está doente?

- Vó, por favor, abra a porta!
- Acalme-se querida, a vovó não está bem! Estou com uma doença perigosa, e se você vier aqui agora vai pegar a doença também!
- Não me importa vó, pelo amor de Deus, abra esta porta... – Morgana agora começava a chorar. Não via a hora de ser acudida por alguém, de receber proteção, de ter certeza de que tudo estava finalmente acabado. – O que houve aqui vó? Por favor, abre a porta e me conta!  Eu preciso da sua ajuda, estou desesperada!

Então a porta se abre.

Morgana, ao ver sua avó, pensou em correr para abraçá-la, mas segurou seu ímpeto ao ver o estado em que ela estava. Ao invés da senhora gorda e sorridente, de cabelos brancos, que sempre conhecera, estava uma senhora muito magra, com uma touca na cabeça, máscara sobre a boca, um óculos horrível nos olhos, a pele maltratada, luvas nas mãos, e uma bengala. Andava encurvada, e mal dava para ver seu rosto. Os cabelos estavam presos dentro da touca, e ela tossia roucamente, com a mão na boca.

Morgana deu um passo atrás, desconfiada. Um pensamento terrível a invadiu os pensamentos, e seu estômago congelou só com a idéia. Resolveu perguntar.

- Vó, você tá bem?
- Ah, não estou não... cof, cof, não estou não minha filha...  – a voz da senhora estava realmente muito arranhada, forçada, e não parecia a sua voz natural. Ao menos as roupas eram realmente as da avó.
- O que aconteceu aqui?
- Ah, menina, veio um cachorro do mato, e eu sofri para expulsar ele de dentro de casa...
- Ahhh... – Morgana parecia não acreditar naquilo, mas não sabia mais o que dizer.
- E você, menina, por que está tão suja! Por que está com o pé enfaixado, e pra quê esse cajado aí na sua mão! Olha essa sua roupa, está toda ensangüentada! Você deve estar machucada. Tire essa roupa, para que eu possa lavar, e para eu saber se você está bem...
A velha então deu um passo em direção à menina, estendendo a mão sobre ela. Foi quando Morgana sentiu o cheiro horrível e penetrante que exalava do corpo de Lobo, e deu um passo para trás, com repulsa, fazendo uma cara de nojo, e batendo contra a mesa.
- Vamos, tire a roupa, minha filha!
- Não!

Gritando, Morgana disparou para dentro do quarto da avó, fechou a porta e se trancou. Ouviu as batidas do lado de fora, e a voz de Lobo, que gritava furiosamente:

- Venha cá, doçura! Ou eu mesmo vou aí te pegar!

Morgana correu para o guarda-roupas, para procurar a espingarda de sua avó, e deu um grito alto e agudo quando abriu a porta e o corpo de sua avó caiu lá de dentro, a cabeça separada do corpo de maneira cruel e violenta.

Para seu desespero ainda maior, a espingarda não estava mais lá. Morgana ouviu então Lobo trancando a porta da sala pelo lado de fora, e correndo para entrar pela janela do quarto, que não tinha como ser trancada. Ao vê-lo invadindo a janela, vestido com a roupa de sua avó, mas já sem a touca, a máscara e nem as luvas, o desespero bateu completamente na mente de Morgana. Ela destrancou o quarto e correu para a sala.

Quando descobriu a porta dos fundos trancada, tentou a porta da frente. Não conseguindo abri-la, correu para trás da mesa, que era redonda, ao ver Lobo entrando na cozinha. Ele sorriu com insanidade, provocando-a:

- Vem, gostosinha, vem cá pra eu tratar esses seus machucados! Vem!

Os olhos de Morgana estavam arregalados de pavor. Respirava rápido, e não sabia para onde ir. Lobo ameaçou vir por um lado da mesa, ela ameaçou dar a volta pelo outro. Ele repetiu a brincadeira, tentando pelo lado oposto. Fizeram isso umas três vezes, quando ele saltou rapidamente por cima da mesa, agarrando Morgana e prendendo-a contra a pia. Foi quando ela agarrou um jarro de cerâmica que ali estava, e lhe golpeou com força descomunal na cabeça, gritando:
- SEU FILHO DA PUTAAAAA!

Ele caiu no chão, atordoado. Rapidamente, Morgana abriu uma gaveta e retirou de lá a maior faca que encontrou. Pulou sobre o corpo de Lobo, ajoelhada sobre seu ventre, e, segurando a faca com ambas as mãos e o gume voltado para baixo, ergueu-a no alto da cabeça e gritou:
- ESSA É PELA MINHA AVÓ!

Assim, desferiu um potente golpe direto contra o coração dele. Ele arregalou os olhos, e desferiu uma última e breve inspirada. Mal o ar entrara em seu pulmão, a garota removeu a faca, segurou-a com a mão direita – ainda com o gume para baixo – e encostou a lâmina no pescoço dele.
- E ESSA É POR MIM!

E com esse grito de fúria ensandecida, Morgana atravessou a lâmina na garganta de Lobo, destruindo-lhe a metade frontal do pescoço, e encerrando-lhe a vida miserável de uma vez por todas. A potência do golpe fez com que o sangue espirrasse violentamente contra o rosto e o peito da garota, o que, combinado com seu olhar insano e psicótico, formava uma aparência macabra e assustadora.

E assim, sob o ressoar de um poderoso trovão e o relampejar brevíssimo dos céus escuros e da chuva intensa, Morgana gritou. Um grito prolongado, profundo, furioso e ensandecido. E perdeu-se a desferir facadas contra o peito do Lobo, chorando e soluçando convulsivamente.

- DESGRAÇADO! DESGRAÇADO! DESGRAÇADO! DESGRAÇADO! DESGRAÇAAAAADOOOOOOOOOO!!!!!

E quem ouvisse sua voz, sentiria um monstro psicopata enlouquecido, descontrolado, e enraivecido, descontando toda sua fúria em um alvo já desfalecido e inofensivo.

Enfim, depois de desferir mais de cinqüenta facadas descontroladas no peito de Lobo, Morgana finalmente se cansou. Levantou-se, apressada e assustada, derrubando a mesa atrás de si, e olhou para o corpo ensangüentado de seu inimigo. O medo e a dor foram embora. Ela respirava com força, como se tivesse corrido uma maratona, e sua roupa estava repleta de respingos de sangue. Encarava sua realidade, atordoada, quando de repente um relâmpago iluminou um vulto que estava parado à porta.

Morgana segurou a faca com firmeza, enquanto um homem entrava assustado, mas corajoso, pelo casebre. Era um homem alto, forte, troncudo e musculoso, com uma espessa barba castanha a lhe cobrir o rosto. Os cabelos castanhos eram curtos, e, como todo o resto da roupa, estavam ensopados pela chuva forte que caía. Na mão direita, segurava com força um grande machado, daqueles usados para derrubar árvores. Ele olhava, pasmo, para a cena à sua frente. Deu um passo à frente, e falou:

- Acalme-se, por favor. Largue esta faca, senhorita...

Espere, espere! E se, ao invés de simplesmente terminarmos a história como todo mundo conhece, nós tivéssemos DOIS finais diferentes para o conto? De qual deles você gostaria mais?
Então, caríssimos leitores, apresento-lhes o primeiro final.
Eu, particularmente, acho ele sem graça...

A voz calma do lenhador, e a segurança exibida em seu olhar firme e determinado, fizeram o coração de Morgana se acalmar. Finalmente. Estava acabado!

Oh meu deus! Finalmente, alguém para me ajudar!
E, desabando em lágrimas, Morgana deixa a faca cair no chão e se atira para o lenhador, abraçando-o como a um pai ausente e distante. E soluçou por vários minutos, antes de tentar explicar a situação.

O lenhador, por sua vez, viu-se constrangido e sem saber o que fazer. Mas, a julgar pela atitude tomada pela moça, ela estava desesperada, e precisava de ajuda. Ele precisaria esperar, e ouvir o que ela tinha a dizer.

Quando começou a falar, Morgana estava incompreensível, de tanto que soluçava. Mas, depois de tomar um copo d’água, conseguiu se acalmar um pouco. Sentou-se em uma cadeira, e explicou ao lenhador toda a sua história, desde o momento em que saíra de casa, até agora. Descreveu as monstruosidades que Lobo fora capaz de fazer, e lhe mostrou o corpo decapitado da avó.

Após ouvir tudo isso, o lenhador abraçou Morgana com ternura, e a disse:
- Calma, menina. Está tudo bem agora. Ele está morto, e eu irei proteger você de todo o resto. Agora vai ficar tudo bem.

E assim, protegida pelo lenhador, Morgana foi levada para casa, onde se encontrou com sua mãe, e contou sua infeliz história. Sua mãe agradeceu ao lenhador, por todos os deuses, por ter lhe trazido a filha de volta, e o convidou para jantar em casa naquele dia.

Todos foram ao enterro da avó de Morgana. Semanas depois, o lenhador se casou com a mãe de Morgana, passando a assumir o papel de pai e protetor da garota. Mas, mesmo assim, Morgana nunca mais pisou novamente naquela floresta.

E as marcas das garras do lobo mau ficaram, em seu corpo e sua alma, para sempre.


Oh, que lindo! *-*
A triste história da garota que foi estuprada, matou seu agressor, e encontrou um homem que a pudesse proteger de males como aquele para sempre!
Mas que história mais brega!

E é por isso que eu, com prazer, apresento-lhes então o segundo final da história!

- Acalme-se, por favor. Largue esta faca, senhorita...

Os olhos de Morgana se arregalaram. Quem era aquele homem?

Largue esta faca? Está maluco? Você só pode ser mais um desgraçado tentando se aproveitar de mim e da minha ingenuidade! Não largo esta faca, e não ouse dar um passo à frente!

Morgana deu um passo assustado para trás. O lenhador, tentando ajudar, deu mais um passo para dentro da casa. Estendeu a mão, com calma.
- Senhorita, não tenha medo. Estou aqui para ajudá-la. Dê-me a faca!

Mas Morgana não ouvia. Sua mente já estava perturbada demais para associar as coisas naquele instante. Os olhos arregalaram-se ainda mais, e um sorriso insano brotou em seus lábios.

Aquele homem... Estava lhe estendendo a mão! Devia estar tentando agarrá-la, como fez o desgraçado do Lobo, para maltratá-la, para violentá-la, para feri-la!

- Você quer a faca?
O lenhador fez que sim com a cabeça. Morgana segurou então a faca pelo gume, e a ergueu na altura do rosto.

- ENTÃO TOMA!

E, com um preciso e poderoso golpe, arremessou a faca na jugular do lenhador. A lâmina perfurou seu pescoço com precisão, e ele caiu no chão, largando o machado e tentando segurar o sangramento. Aturdido, ele não sabia o que fazer.

Morgana abriu um armário da cozinha de sua avó, e encontrou lá o que não havia encontrado antes: a espingarda. Lembrava-se, só de vista, de como se fazia. Verificou se estava carregada, tudo com a frieza e a paciência de um assassino, enquanto o pobre homem sangrava descontroladamente ao seu lado. Enfim, apontou a arma para o rosto do lenhador, e olhou com frieza em seus olhos desesperados antes de dizer:

- Morra, desgraçado!

PAM!

Os miolos do lenhador se mesclaram à decoração da cozinha.

Foi quando, repentinamente, seus pensamentos se enevoaram. Tudo ficou escuro, e ela perdeu o equilíbrio. Apoiou-se na pia, e viu algumas facas afiadas e grandes de sua avó. Cerca de um minuto se passou, e sua visão foi ficando mais clara. Por algum motivo, tudo estava confuso... Tinha medo, tinha ódio, tinha dor. Sem enteder direito o porquê, pegou uma toalha de mesa e enrolou nela todas as facas que achou grandes o bastante. Apossou-se também da espingarda, e de toda a munição que encontrou.

Morgana olhou para fora... A chuva cessava vagarosamente, e os trovões ainda iluminavam o céu a todo instante. Começou a caminhar, decidida, mas ao mesmo tempo indecisa. Queria fugir. Queria desaparecer. Queria até mesmo morrer.

Quando passou ao lado do cadáver do lenhador, olhou para o desenho que formavam os miolos e o sangue na parede, e parou por alguns segundos. Ficou visualizando o que seria aquela imagem horrenda, pensando em mil coisas ao mesmo tempo. Seus olhos se arregalaram quando ela teve certeza de que aquilo era, definitivamente, a vista frontal da cabeça de um lobo.

Olhou então para o corpo inerte ao seu lado. Respirou profundamente, encarando-o com frieza, e então sorriu com escárnio. Escarrou com força sobre o corpo, e pôs-se novamente a caminhar. Por fora, uma mulher fria, decidida, madura e mortífera. Por dentro, os cacos desesperados de uma alma despedaçada. Quem olhasse profundamente em seus olhos, poderia ler com clareza seus pensamentos: insanidade absoluta.

A floresta, dessa vez mais escura, fria e silenciosa do que antes, viu apenas um vulto. Uma figura psicopata, de caminhar trôpego e lento, mas de passos conscientes, com uma capa negra a cobrir um vestido branco e imundo de sangue, terra, lágrimas e sofrimento, encarava-a com fúria e desejo de vingança. Morgana tinha a cabeça baixa, mas os olhos fixamente direcionados para a floresta. E a noite estremeceu quando sentiu sua presença...

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